List Of Contents | Contents of Lendas do Sul, by J. Somoes Lopes Netto
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LENDAS DO SUL
J. Simões Lopes Neto

1913
Echenique & C. — Editores
Pelotas





NOTA



Convém recordar que o primeiro povoamento branco do Rio Grande do
Sul foi espanhol; seu poder e influencia estenderam-se até depois da
conquista das Missões; provém disso que as velhas lendas rio-
grandenses acham-se tramadas no acervo platino de antanho.

Vem da Ibéria, a topar-se com a ingênua e confusa tradição
guaranítica (v. g. a lenda da M’boi-tátá) a mescla cristã-árabe de
abusões e misticismo; dos encantamentos e dos milagres; desses
elementos, confundidos e abrumados ( p. ex. a salamanca do serro do
Jarau ), nasceram idealizações novas e típicas adaptadas ou
decorrentes do meio físico e das gentes ainda na crassa infância das
concepções.


E, como entre conquistadores brancos corria intensa e rábida a febre
da riqueza — o sonho escaldante do El-Dorado — a fulgir nas areias
e nos cascalhos, espadanando das entranhas misteriosas e apojadas do
Novo-Mundo, a preponderante vivaz das suas ficções é sempre a
imantada ânsia — pelo ouro!, forte sobre a dor e a própria morte...

Com a entrada dos mamelucos paulistas outras e doutra feição vieram
do centro e norte do Brasil: o saci, o caápora, a oiára,
que esfumaram-se no olvido.

Por último uma única se formou já entre gente lusitana
radicada e a incipiente, nativa: a do Negrinho do pastoreio.


A estrutura de tais lendas perdura; procurei delas dar aqui uma
feição expositiva — literária e talvez menos feliz — como
expressão da dispersa forma porque a ancianidade subsistente
transmite a tradição oral, hoje quase perdida e mui confusa: ainda
por aí se avaliará das modificações que o tempo exerce
sobre a memória anônima do povo.






*A M’BOI-TÁTÁ*
_A’ Andrade Neves Neto_




_Meu caro Simões L. Neto_

_Agradeço não me haveres esquecido com a tua amizade e com o teu
talento. A lenda da “_boi-tátá_ ”, também conhecida dos nossos
sertanejos, com variantes que muito a diferençam da que escreveste,
deve figurar no “folk-lore” gaúcho, onde já cintila, acesa por ti,
a velinha do “Negrinho do Pastoreio”, à cuja claridade puseste meu
nome. Prossegue, porque fazes trabalho de valor e muito me alegro
por haver insistido com a tua modéstia para que continuasses a
colher, aqui, ali, essas flores eternas da Poesia do povo, fazendo
com elas o ramo que será um encanto para todas as almas
e gloria para o teu nome. Abraço-te_

_teu_

_Coelho Neto_


_Rio 20-XI-09_




A M’BOI-TÁTÁ



I


Foi assim:

num campo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que
pareceu que nunca mais haveria luz do dia.

Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e
sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das
flores da mataria.

Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco
não havia, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo
canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso
poupar os tições...

Os olhos andavam tão enfarados da noite, que, ficavam parados, horas
e horas, olhando sem ver as brasas vermelhas do nhanduvái... as
brasas somente, porque as faiscas, que alegram, não saltavam,
por falta do sopro forte de bocas contentes.

Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar
pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido
nem vista para bater querência; até nem sorro daria no seu próprio
rastro!

E a noite velha ia andando... ia andando...



II


Minto:

no meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma
banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho
vivente, furava o ar; era o _téu-téu_ ativo, que não dormia desde o
entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol
novo, que devia vir e que tardava tanto já...

Só o _téu-téu_ de vez em quando cantava; o seu — _quero quero!_ —
tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia agüentando a
esperança dos homens, amontoados no redor avermelhado das brasas.


Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento,
então, nem nada.



III

Minto:

na ultima tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o
lado para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe
a estrela d’alva, nessa ultima tarde também desabou uma chuvarada
tremenda; foi uma manga d’água que levou um tempão
a cair, e durou... e durou...

Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas

coleando os tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os
passos cresceram e todo aquele peso d’água correu para as sangas e
das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo
fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas
coroas é que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado,
no assombro. E era terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes
e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!...

Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas, as cobras
se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e
das tiriricas boiavam os ratões e outros miúdos.

E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra
grande, a — _boi-guassú_ — que, havia já muitas mãos de luas,
dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabiando.

Começou depois a mortandade dos bichos e a _boi-guassú_ pegou a
comer as carniças. Mas só comia os olhos e nada, nada mais.

A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando,
e a cada hora mais olhos a cobra grande comia.



IV

Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.

A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do
milho verde; o cerdo que come carne de bagual nem vinte alqueires de
mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no
sangue tem cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem
comer nada, dam nos olhos a cor dos seus arrancos. O homem de olhos
limpos é guapo e mão aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado
com os amarelos; e toma tenência doble com os raiados e baços!...

Assim foi também, mais de outro jeito, com a _boi-guassú_,
que tantos olhos comeu.



V

Todos — tantos, tantos! que a cobra grande comeu —, guardavam
entranhando e luzindo, um rastilho da ultima luz que eles viram do
último sol, antes da noite grande que caiu... E os olhos — tantos,
tantos! — com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no
principio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão,
depois, como uma braçada...



VI

E vai,

como a _boi-guassú_ não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o
dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro
grosso como a anta vai, o seu corpo foi ficando transparente
clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram
esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz.
E vai, afinal, a boi-guassú toda já era uma luzerna, um clarão sem
chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria,
saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam
vivos...



VII

Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela primeira vez
viram a _boi-guassú_ tão demudada, não a conheceram mais. Não
conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamaram-na desde
então, de _boi-tátá_, cobra de fogo, _boi-tátá_ , a _boi-tátá_ !

E muitas vezes a _boi-tátá_  rondou as rancherias, faminta, sempre
que nem chimarrão. Era então que o téu-téu cantava, como bombeiro.

E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande
corpo de serpente, transparente — _tátá_, de fogo — que media mais
braças que três laços de conta e iam alumiando baçamente as
carquejas... E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo,
pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os
olhos e a _boi-tátá_  ainda cobiçava os olhos vivos
dos homens, que já os da carniça enfaravam...



VIII

Mas, como dizia:

na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da _boi-tátá_ , e
era por ela que o _téu-téu_ cantava de vigia, em todos
os flancos da noite.

Passado um tempo, a _boi-tátá_  morreu; de pura fraqueza morreu,
porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas não lhe deram
sustância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si
entranhada tiveram quando vivos...

Depois de rebolar-se rabiosa nos montes de carniça, sobre os montes
pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre
as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se,
também como cousa da terra, que se estraga de vez.

E foi então que a luz que estava preza se desatou por aí.

E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo!



IX

Minto:

apareceu, sim, mas veio de sopetão. Primeiro foi se adelgaçando o
negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no
coloreado do céu; depois foi sendo mais claro, mais claro, e logo,
na lonjura, começou a subir uma lista de luz... depois a metade de
uma cambota de fogo... e já foi o sol que subiu, subiu, subiu até
vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita,
para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre.



X

Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, para
nascer de novo: só a luz da _boi-tátá_  ficou sozinha,
nunca mais se juntou com outra luz de que saiu.

Ainda sempre se arrisca e só, nos lugares onde quanta
carniça houve, mais se infesta. E no inverno, de entanguida,
não aparece e dorme talvez entocada.

Mas de verão, depois da quentura dos mormaços,
começa então seu fadário.

A _boi-tátá_ , toda enroscada, como uma bola — _tátá_, de fogo! —
empeça a correr pelo campo, coxilha abaixo, lomba acima,
até que horas da noite!...

É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega seca
nem aquenta a água dos manantiais; e rola, gira, corre,
corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagando...
e quando menos se espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito!

Maldito! T’esconjuro!



XI

Quem encontra a _boi-tátá_ pode até ficar cego... Quando alguém topa
com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito
quieto, de olhos apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou
se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e
atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto,
todo solto, até a ilhapa!

A _boi-tátá_ vem acompanhado o ferro da argola... mas de repente
batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz,
para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.



XII

Campeiro precatado! reponte o seu gado da _boi-tátá_ : o pastiçal,
aí, faz peste...

Tenho visto!







*A SALAMANCA DO JARAU*
_A Alcides Maya_



O Serro do Jarau 1
A salamanca 2




I


Era um dia...,

um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que
só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais,
estava conchavado de posteiro, ali na entrada do rincão; e nesse dia
andava campeando um boi barroso.

E no tranquito andava, olhando; olhando para o fundo das sangas;
para o alto das coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez deitado
estivesse entre as carquejas — a carqueja é sinal de campo bom —,
por isso o campeiro ás vezes alçava-se nos estribos e, de mão em
pala sobre os olhos, firmava mais a vista entorno; mas o boi
]barroso, crioulo daquela querência, não aparecia; e Blau ia
campeiando, campeiando...



Campeiando e cantando:



“Meu bonito boi barroso,
Que eu já contava perdido,
Deixando o rastro na areia
Foi logo reconhecido.


“Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora;
E gritei — aperta, gente,
Que o meu boi se vai embora! —


“No cruzar uma picada,
Meu cavalo relinchou,
Dei de rédea para a esquerda,
E o meu boi me atropelou!


“Nos tentos levava um laço
De vinte e cinco rodilhas.
P’ra laçar o boi barroso
Lá no alto das coxilhas!


“Mas o mato carrasquento
Onde o boi ‘stava embretado,
Não quis usar o meu laço
P’ra não vê-lo retalhado


“E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré,
P’ra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré.


“E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga,
P’ra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga.


“E mandei fazer um laço
Do couro da capivara
P’ra laçar meu boi barroso
Nem que fosso à meia-cara;


“Este era um laço de sorte,
Pois quebrou do boi a balda”...
 . . . . . . . . . . . . . . . .
 . . . . . . . . . . . . . . . .



No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza,
no atraso das suas cousas.

No atraso das suas cousas, desde o dia em que topou — cara à cara!
— com o Caipora num campestre da serra grande, p’ra lá,
muito longe no Botucaraí...

A lua ia recém saindo...; e foi à boquinha da noite...

Hora de agouro pois então!...

Gaúcho valente que era dantes, ainda era valente agora; mas, quando
cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando
e o do contrario o lanhava...

Domador destorcido e parador, que, por só pabolajem gostava de
paletear, ainda era domador agora; mas, quando gineteava mais
folheiro, ás vezes, num redepente, era volteado...

De mão feliz para plantar, que não lhe chochava semente nem muda de
raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura
ia apontando da terra, dava uma praga em toda, tanta, que benzedura
não vencia...; e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal
floria, e quando dava fruta, era mixe e era azeda...

E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas
o gaúcho pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeiando, sem
topar co’o boi barroso.

De repente, na volta duma reboleira, bem na beirada dum boqueirão,
sofrenou o tostado...: ali em frente, quieto e manso, estava um
vulto, de face tristinha e mui branca.

Aquele vulto de face branca... aquela face tristonha!...

Já ouvira falar dele, sim, não uma nem duas, mas muitas vezes...; e
de homens que o procuravam, de todas as pintas, vindos de longe, num
propósito, para endrominas de encantamentos..., conversas que se
falavam baixinho, como num medo; p’r’o caso, os que podiam não
contavam, porque uns, desandavam apatetados e vagavam por aí, sem
dizer cousa com cousa, e outros calavam-se muito bem calados, talvez
por juramento dado...

Aquele vulto era o santão da salamanca do serro.



Blau Nunes sofrenou o cavalo.

Correu-lhe um arrepio no corpo, mas era tarde para recuar: um homem
é para outro homem!...

E como era ele

quem chegava, ele é que tinha de louvar; saudou:

— Láus’ Sus’ Cris’!...3

— Para sempre, amem! disse o outro, e logo ajuntou: O boi barroso
vai trepando serro acima, vai trepando... Ele anda cumprindo
o seu fadário..4


Blau Nunes pasmou do adivinho; mas respostou:

— Vou no rastro!...

— Está enredado...

— Sou tapejara, sei tudo, palmo a palmo, até à boca preta do fumo
do serro...

— Tu... tu, paisano, sabes a entrada da salamanca?...

— É lá?... Então, sei, sei! A salamanca do serro do Jarau!...
Desde a minha avó charrua, que eu ouvi falar!...

— O que contava a tua avó?

— A mãe da minha mãe dizia assim:

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