List Of Contents | Contents of Lendas do Sul, by J. Somoes Lopes Netto
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II


— Na terra dos espanhóis, do outro lado do mar, havia uma cidade
chamada—Salamanca — onde viveram os mouros, os mouros que eram
mestres nas artes de magia; e era numa furna escura que eles
guardavam o condão mágico, por causa da luz branca do sol,
que diz’ que desmancha a força da bruxaria...



O condão estava no regaço de uma fada velha, que era uma princesa
moça, encantada, e bonita como só ela!...

Num mês de quaresma os mouros escarneceram muito do jejum dos
batizados, e logo perderam uma batalha muito pelejada; e vencidos
foram obrigados ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita... e a baterem
nos peitos, pedindo perdão...

Então, depois, alguns, fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram
dar nestas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata,
pedras finas, gomas cheirosas... riquezas para levantar de novo o
seu poder e alçar de novo a Meia-Lua sobre a Estrela de Belém...



E para segurança das suas traças trouxeram escondida a fada velha,
que era a sua formosa princesa moça...

E devia ter mesmo muito força o condão, porque nem os navios se
afundaram, nem os frades de bordo desconfiaram, nem os próprios
santos que vinham, não sentiram...



Nem admira, porque o condão das mouras encantadas sempre aplastou a
alma dos frades e não se importa com os santos do altar, porque
esses são só imagens...


Assim bateram nas praias da gente pampeana os tais mouros e mais
outros espanhóis renegados. E como eles eram, todos, de alma
condenada, mal puseram pé em terra, logo na meia noite da primeira
sexta-feira foram visitados pelo Diabo deles, que neste lado do
mundo era chamado de Anhangá-pitã5 e mui respeitado. Então, mouros e
renegados disseram ao que vinham; e Anhangá-pitã folgou muito;
folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas e destas serras era
gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta
e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos
sempre abertas e fazedoras...

Por isso Anhangá-pitã folgou, porque assim minava para o peito dos
inocentes as maldades encobertas que aqueles chegados traziam...; e
pois, escutando o que eles ambicionavam para vencer a Cruz com a
força do Crescente, o maldoso pegou do condão mágico — que navegara
em navio bento e entre frades rezadores e santos milagrosos —,
esfregou-o no suor do seu corpo e virou-o em pedra transparente; e
lançando o bafo queimante do seu peito sobre a fada moura, demudou-a
teiniaguá6 , sem cabeça. E por cabeça encravou então no novo corpo da
encantada a pedra, aquela, que era o condão, aquele.



E como já era sobre a madrugada, no crescimento da primeira luz do
dia, do sol vermelho que ia querendo romper  dos confins por sobre o
mar, por isso a cabeça de pedra transparente ficou vermelha como
brasa e tão brilhante que os olhos de gente vivente não podiam parar
nele, ficando encandeiados, quase cegos!...



E desfez-se a companhia até o dia da peleja da nova batalha. E
chamaram — salamanca — à furna desse encontro; e o nome ficou
p’r’as furnas todas, em lembrança da cidade dos mestres mágicos.



Levantou-se um ventarrão de tormenta e Anhangá-pitã, trazendo num
bocó a teiniaguá, montou nele, de salto, e veio correndo sobre a
correnteza do Uruguai, por léguas e léguas, até as suas nascentes,
entre serranias macotas.

Depois, desceu, sempre com ela; em sete noites de sexta-feira
ensinou-lhe a vaqueanajem de todas as furnas recamadas de tesouros
escondidos... escondidos pelos cauílas, perdidos para os medrosos e
achadio de valentes... E a mais desses, muitos outros tesouros que a
terra esconde e que só os olhos do zaorís7 podem vispar...



Então Anahangá-pitã, cansado pegou num cochilo pesado, esperando o
cardume da desgraças novas, que deviam pegar p’ra sempre...

Só não tomou tenência que a teiniaguá era mulher...

Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrúa8 contava à minha
mãe, e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros que,
esses, viram!...




E Blau Nunes bateu o chapéu para o alto da cabeça, deu um safanão no
cinto, aprumando o facão...; foi parando o gesto e ficou-se olhando,
sem mira, para muito longe, para onde a vista não chegava mas onde o
sonho acordado que havia nos seus olhos chegava de sobra e ainda
passava... ainda passava, porque o sonho não tem
lindeiros nem tapumes...


Falou então

o vulto de face branca e tristonha; falou em voz macia.
E disse assim:



III


É certo:

não tomou tenência que a teiniaguá era mulher... Ouve paisano.



No costado da cidade  onde eu vivia havia uma lagoa, larga e funda,
com uma ilha de palmital, no meio. Havia uma lagoa...



A minha cabeça foi banhada na água  benta da pia, mas nela
encontraram soberbos pensamentos maus... O meu peito foi ungido com
os santos óleos, mas nele entrou a doçura que tanto amarga,
do pecado...

A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura
que requeima, dos beijos da tentadora...



Mas, é que assim era o fado... ; tempo e homem virão para me
libertar, quebrando o encantamento que me amarra; duzentos anos hão
de findar; eu esperarei no entanto, vivendo na minha tristeza seca,
tristeza de arrependido que não chora...

Tudo o que me volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no chão...



Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres
na igreja de S. Tomé, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia
bem acender os círios, feitos com a cera virgem das abelheiras da
serra; e bem balançar o turíbulo, fazendo ondear a fumaça cheirosa
do rito; e bem tocar a santos, na quina do altar, dois degraus
abaixo, à direita do padre; e dizia as palavras do missal; e nos
dias de festa sabia repicar o sino; e bater as horas, e dobrar a
finados... Eu era o sacristão.



Um dia, na hora do mormaço, todo o povo estava nas sombras,
sesteando; nem voz grossa de homem, nem cantoria das moças, nem
choro de crianças: tudo sesteava. O sol faiscava nos pedregulhos
lustrosos, e a luz parecia que tremia, peneirada no ar parado, sem
uma viração.

Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela portinha da sacristia,
levando no corpo a frescura da sombra benta, levando na roupa o
cheiro da fumaça piedosa. E sai sem pensar em nada, nem de bem nem
de mal; fui andando como levado...

Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.

A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e
qual como uma marmita no borralho. Por certo que lá embaixo, dentro
da terra é que estaria o braseiro que levantava aquela fervura que
cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas dos socós e
espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas águas...

Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa... ferver,
sem fogo que se visse!

A mão direita, pelo costume, andou a fazer o “Pelo Sinal”... e
parou, pesada como chumbo; quis rezar um “Credo”, e a lembrança
dele recuou; e voltar, correr e mostrar o Santíssimo... e tanger o
sino em dobre... e chamar o padre superior, tudo para esconjurar
aquela obra do inferno... e nada fiz... sem força na vontade, nada
fiz... nada fiz, sem governo no corpo!...

E fui andando, como levado, para mais de perto ver,
e não perder de ver o espantoso

Porém logo outra força acalmou tudo; apenas a água fumegante
continuou retorcendo os lodos remexidos, onde boiava toda uma
mortandade dos viventes que morrem sem gritar...



Era no fim de lançante comprido, estrada batida e limpa, de todos os
dias as mulheres irem para a lavagem; e quando eu estava na beira da
água, vendo o que estava vendo, então rompeu dela um clarão, maior
que o da luz a pino do dia, clarão vermelho, como dum sol morrente,
e que luzia desde o fundão da lagoa e varava a água barrenta...

E veio crescendo para a barranca, e saiu e tomou terra, e sem medo e
sem ameaça veio andando para mim a sempre escapada maravilha...,
maravilha que os que nunca viram juravam sempre ser — verdade — e
que eu, que estava vendo, ainda jurava ser — mentira! —

Era a teiniaguá, de cabeça

de cabeça de pedra luzente, por sem dúvida; dela já tinha ouvido ao
padre superior a historia contada dum encontradiço que quase cegou
de teimar em agarrá-la.

Entrecerrei os olhos, coando a vista, cautelando perigo; mas a
teiniaguá veio me chegando, deixando no chão um duro rastro d’água
que escorria e logo secava, do seu corpinho verde de lagartixa
engraçada e buliçosa...

Lembrei-me — como quem olha dentro de cerração — lembrei-me do
corria na voz da gente sobre o entanguimento que traspassa o nosso
corpo na hora do encantamento: é como o azeite fino no couro
ressequido...

Mas não perdi de todo a retentiva: pois que da água saía, é que na
água viveria. Ali perto, entre os capins, vi uma guampa e foi o
quanto agarrei dela e enchi-a na lagoa, ainda escaldando, e frenteei
a teiniaguá que, da vereda que levava, entreparou-se, tremente,
firmando nas patinhas da frente, a cabeça cristalina, como curiosa,
faiscando...

De olhos apertados, piscando, para me não atordoar dum golpe de
cegueira, assentei no chão a guampa e preparando o bote, num
repente, entre susto e coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para
dentro dela!

Neste passo senti o coração como que martelar-me no peito e cabeça
sonando como um sino de catedral...



Corri para o meu quarto, casa grande dos santos padres. Entrei pelo
cemitério, por detrás da igreja, e desatinado, derrubei cruzes,
pisoteei ramos, calquei sepulturas!...

Todo o povo sesteava; por isso ninguém viu.



Fechei a guampa dentro da canastra e fiquei estatelado, pensando.



Pelo falar do padre superior eu bem sabia que quem prendesse a
teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais rico que o
Papa de Roma, e o imperador Carlos Magno e o rei da Trebizonda e os
Cavaleiros da Tábola...

Nos livros que eu lia estes todos eram os mais ricos que conhecia.

E eu, agora!...

E não pensei mais dentro da minha cabeça, não; era uma cousa nova e
esquisita: eu via, com os olhos, os pensamentos diante deles, como
se fossem cousas que se pudesse tantear com as mãos...

E foram se escancarando as portas de castelos e palácios, onde eu
entrava e saía, subia e descia escadarias largas, chegava ás
janelas, arredava reposteiros, deitava-me em trastes que nunca tinha
visto e servia-me em baielas estranhas, que eu não sabia
para o que prestavam...

E foram-se estendendo e alargando campos sem fim, perdendo o verde
no azul das distancias, e ainda lindando com outras estancias, que
também eram minhas e todas cheias de gadaria, rebanhos e manadas...

E logo cancheava erva nos meus ervais, cerrados e altos
como o mato virgem...

E atulhava de planta colhida — milho, feijão, mandioca — os
meus paióis.

E detrás das minhas camas, em todos os quartos dos meus palácios,
amontoava surrões de ouro em pó e pilhotes de barras de prata;
dependuradas na galhação de cem cabeças de cervo, tinha bolsas de
couro e de veludo atochadas de diamantes, brancos como gotas d’água
filtrada em pedra, que os meus escravos — saídos mil, chegados
dez —, tinham ido catar nas profundas do sertão, muito para lá duma
cachoeira grande, em meia lua, chamada de Iguaçu, muito p’ra lá
doutra cachoeira grande, de sete saltos, chamada de Iguaíra...



Tudo isto eu media e pesava e contava, até cair de cansaço; e mal
que respirava um descanso, de novamente, de novamente pegava a
contar, a pesar, a medir...


Tudo isto eu podia ter — e tinha, de meu, tinha! —, porque era
dono da teiniaguá, que estava presa dentro da guampa, fechada na
canastra forrada de couro cru, taxeada de cobre,
dobradiças de bronze!...



Aqui ouvi o sino da torre badalando para a oração da meia-tarde...

Pela primeira vez não fui eu que toquei: devia ser um dos padres,
na minha falta.

Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.


Voltei a mim. Lembrei-me de que o animalzinho precisava alimento.

Tranquei portas e janelas e saí para buscar um porongo de mel de
lechiguana, por ser o mais fino.

E fui; melei; e voltei.

Abri sutil a porta e tornei a fechá-la ficando no escuro.

E quando descerrei a janela e andei para a canastra a tirar a guampa
e libertar a teiniaguá para comer o mel, quando ia fazer isso, os
pés se me enraizaram, os sentidos do rosto se ariscaram e o coração
mermou no compassar do sangue!...

Bonita, linda, bela, na minha frente estava uma moça!...

Que disse:



IV



— Eu sou a princesa moura encantada, trazida de outras terras por
sobre um mar que os meus nunca sulcaram... Vim, e Anhangá-pitã
transformou-me em teiniaguá de cabeça luminosa, que outros chamam
o — carbúnculo — e temem e desejam, porque eu sou a rosa dos
tesouros escondidos dentro da casca do mundo...

Muitos tem me procurado com o peito somente cheio de torpeza, e eu
lhes hei escapado das mãos ambicioneiras e dos olhos cobiçosos,
relampejando desdenhosa o lume vermelho da minha cabeça
transparente...

Tu, não; tu não me procuraste ganoso... e eu subi ao teu encontro;
e me bem trataste pondo água na guampa e trazendo mel fino para
o meu sustento.

Si quiseres, tu, todas as riquezas que eu sei, entrarei de novo na
guampa e irás andando e me levarás onde eu te encaminhar, e serás
senhor do muito, do mais, do tudo!...

A teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas sou também
a princesa moura...

Sou jovem... sou formosa..., o meu corpo é rijo e não tocado!...

E estava escrito que tu serias o meu par.

Serás o meu par... se a cruz do teu rosário me não esconjurar... se
não, serás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado
o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente,
guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as
riquezas que eu sei e as que tu lhe carrearás por via dessas!...

Si a cruz do teu rosário não me esconjurar...



Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o crescente
dos infiéis...



E foi se adelgaçando

no silêncio a cadencia em balante da fala induzidora.

A cruz do meu rosário...

Fui passando as contas, apressado e atrevido, começando na
primeira... e quando tenteei a ultima... e que entre as duas os meus
dedos, formigando, deram com a Cruz do Salvador... fui levantando o
Crucificado... bem em frente da bruxa, em salvatério... na altura do
seu coração... na altura da sua garganta... da sua boca...
na altura dos...

E aí parou, porque olhos de amor, tão soberanos e cativos, em mil
vidas de homem como o aroma sai da flor que vai apodrecendo...



Cada noite

era meu ninho o regaço da moura; mas quando batia a alva, ela
desaparecia ante a minha face cavada de olheiras...

E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os amém,
e todo me estortegava e doía quando o padre lançava a benção sobre a
gente ajoelhada, que rezava para alivio dos seus pobres pecados, que
nem pecados eram, comparados com os meus...



Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do
sacrifício; e eu fui, busquei no altar o copo de ouro consagrado,
todo lavorado de palma e resplendores; e trouxe-o, transbordante,
transbordando...

E embebedados caímos, abraçados.



Sol nado, despertei

estava cercado pelos santos padres.

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