List Of Contents | Contents of Lendas do Sul, by J. Somoes Lopes Netto
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prejuízos exatamente a quantia igual à de suas mãos recebida.

Ele comprava e pagava e pagava à vista, é certo; o vendedor contava
e recebia, é certo, mas o negócio empreendido por esse valor
era prejuízo, garantido.

Ele vendia e recebia, é certo; mas o valor recebido, que ele
guardava e rondava sumia-se como um vento, e não era roubado nem
perdido; era sumido, por si mesmo...



O boquejar foi alastrando, e já diziam que aquilo, por certo, era
mandinga arrumada na salamanca do Jarau, onde ele foi visto mais de
uma feita... e que lá é que se jogava a alma contra a sorte...

E os mais vivarachos já faziam suas madrugadas sobre o Jarau; outros
mais sorros, p’ra lá tocavam-se ao escurecer; outros, atrevidaços
iam à meia-noite, outros ainda ao primeiro cantar dos galos...

E como nesse carreiro de precatados cada um fazia por ir de mais
escondido, sucedeu que como sombras se pechavam entre as sombras das
reboleiras, sem atinar co’a salamanca, ou sem topete para, na
escuridão, quebrar aquele silêncio, chamando o santão,
num grito alto...

No entanto, Blau começou a ser tratado de longe, como
um chimarrão rabioso...

Já não tinha com quem pautear; churrasqueva solito, e mateava,
rodeado dos cachorros, que uivavam, às vezes um, às vezes todos...

A peonada foi saindo e conchavando-se noutras partes; os negociantes
nada compravam-lhe e negaceavam para vender-lhe; os andantes
cortavam o campo, para não pararem em seus galpões...

Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele
cerco de isolamento, que o ralava e esmorecia...

Montou a cavalo e foi ao serro. Na trepada sentiu nos dois lados
barulho nos bamburrais e nas restingas, mas pensou que seria alguma
ponta de gado chucro que disparava e não fez caso; foi trepando, nem
guaraxaim corrido, nem tatu vadio; era gente, que se escondia
uns dos outros e dele...

Assim que chegou à reboleira do mato, tão sua conhecida e recordada,
e como chegou, deu de cara com o vulto de face branca e tristonha, o
sacristão encantado, o santão.

Ainda desta vez, como era ele que chegava, a ele competia louvar;
saudou, como da outra:

— Laus’ Sus’ Cris’!...

— Para sempre, amém! respondeu o vulto.

Então Blau, de a cavalo, atirou-lhe ao* pés a onça de ouro, dizendo:

— Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, que
não se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque nunca
tem parelha e separa o dono dos outros donos de onças!... Adeus!
Fica-te com Deus, sacristão!

— Seja Deus louvado! disse o vulto e caiu de joelhos, de mãos
postas, como numa reza.

Pela terceira vez falaste no Nome Santo, tu, paisano, e com ele
quebraste o encantamento!... Graças! Graças! Graças!...



E neste mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava
no Nome Santo, neste mesmo momento ouviu-se um imenso estouro, que
retumbou naquelas vinte léguas em redor; o Serro do Jarau, tremeu de
alto a baixo, até as suas raízes, nas profundas da terra, e logo em
cima, no chapéu do espigão, apareceu, cresceu, subiu aprumo-se,
brilhou, apagou-se uma língua de fogo, alta como um pinheiro,
apagou-se e começou a sair fumaça negra, em rolos grandes, que o
vento  ia tocando para longe, por cima do encordoado das coxilhas,
sem rumo feito, porque a fumaceira inchava e desparramava-se no ar,
dando voltas e contravoltas, torcendo-se, enroscando-se em altos e
baixos, num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra e
se desmancha como água passada em regador...

Era a queima dos tesouros da salamanca, como dissera o sacristão.

Sobre as caídas do Serro levantou-se um vozerio e tropel: eram os
maulas que andavam rastreiando a furna encantonada e que agora
fugiam desguaritados, como filhotes de perdiz...



X


Para os olhos de Blau o serro ficou como vidro transparente, e então
viu ele o que lá dentro se passava: os brigões, os jaguares, os
esqueletos, os anões, as lindas moças, a boicininga, tudo, torcido e
enovelado, amontoado, revolvido, corcoveava dentro das labaredas que
subiam e apagavam-se dentro dos corredores, cada vez mais carregados
de fumaça... e urros, gritos, tinidos, silbidos, gemidos, tudo se
confundia no tronar da voz maior que estrondeava no cabeço
empenachado do serro.

Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na teiniaguá... e a
teiniaguá na princesa moura... a moura numa tapuia formosa;... e
logo o vulto de face branca e tristonha tornou à figura do sacristão
de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num guasca  desempenado...

E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida das
outras aquelas criaturas vindas do tempo antigo e lugar distante,
aquele par, juntado e tangido pelo Destino,10 que é o senhor de todos
nós, aquele par novo, de mãos dadas como namorados, deu as costas ao
seu desterro, e foi descendo a pendente do coxilhão, até a várzea
limpa, plana e verde, serena e amornada pelo sol claro, toda bordada
de boninas amarelas, de bibis roxas, e malmequeres brancos, como uma
cancha convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria,
a caminho de repouso!...



Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito uma
cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea
e despacito  foi baixando a encosta do serro, com o coração aliviado
e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde...

E agora estava certo de que era pobre como dantes que comeria em paz
e seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta,
em paz a sua vida!...

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Assim acabou a salamanca do Serro do Jarau, que aí durou duzentos
anos,11 tantos se contam desde o tempo das Sete Missões,
em que estas cousas principiaram.

Anhangá-pitã, também, desde aí, não foi mais visto. Dizem que
desgostoso, anda escondido, por não haver tomado bem tenência que
a teiniaguá era mulher...






*Elucidação*


*1 Serro do Jarau* —Na Coxilha Geral de Sant’Ana, sobre a linha
divisória com a República do Uruguai.

Fica um pouco ao N. da cidade de Quaraí, em campos da família
Assumpção, de Pelotas. É o ponto culminante (...metros) daquela
zona, sendo avistado de muito longe. No fim da guerra do
Farrapos (1845) notaram-se sobre o espigão do Serro, e parecendo
dele sair, grossos rolos de fumaça. É essa a primeira notícia
que há do fenômeno.

Outras combustões registraram-se depois, notadamente por 1904,
em que se disse mesmo que havia expulsão de vapores ígneos.


*2 Salamanca* —Furna encantada; provém a denominação da  cidade
de Salamanca, na Espanha, onde existia, diz-se, uma célebre
escola de magia, no tempo dos Mouros. A seguir a tradição local,
o célebre caudilho Bento Manoel deveu a sua sorte guerreira,
política, de fortuna ao conchavo que ajustou na salamanca do
Jarau. Antes dele, alguns, mas depois, nenhum outro aí  obteve
mais nada, desde — “que o serro pegou fogo” — quando acabou
o encantamento.


*3 Laus’ Sus’ Cris’!* —Forma abreviada e estranha, é certo,
porém expressiva da saudação — Louvado seja Jesus Cristo!
Ouvimo-la inúmeras vezes, em nossa infância.


*4 Boi barroso* —É a vaga relembrança de um boi encantado, que
aparecia porém nunca era encontrado por mais procurado que
fosse; e também denominação de uma antiga dança camponesa, cuja
música era ornada de versos que eram cantados durante
o folguedo.


*5 Anhangá-pitã* — Literalmente, do tupi-guarani: diabo
vermelho.


*6 Teiniaguá* — Idem: lagartixa. A teiniaguá encantada também
era chamada — carbúnculo, farol — e trazia engastada na cabeça
“uma pedra preciosa que cintilava como brasa e de cor
de rubim...

Semelhante animal nunca puderam apanhar nem vivo nem morto,
porque por suas irradiações desvia os olhos e mãos dos
perseguidores”. (Rev°. C. Teschauer, S. J. na Rev. do
Instº. do Ceará, 1911).


*7 Zaorís* — V. adiante a lenda referente.


*8 Charruas* — Tribo guerreira, indômita, acantonada sobre a
Coxilha de Aedo, e dominando o rio Quaraí até o Uruguai e para
L. até o rio Negro. As guerras e contínuas correrias que desde
1750 até mais de um século depois afligiram o Rio Grande e o
Estado Oriental dizimaram esta tribo (como a outras) hoje por
bem dizer, extinta. Desse quase acabamento e a deturpação das
lendas que entre tais gentes floresceram.


*9 Cidade de Santo Tomé* — Na Argentina; sobre o Uruguai, entre
o Rio Icamaquã e a cidade rio-grandense de S. Borja.
“Destruídas as reduções do Guaíra e expulsos pelos mamelucos,
estabeleceram-se os missionários primeiro no centro do Rio
Grande do Sul entre os rios Pardo e Jacuí. Mas só por poucos
anos. Mais tarde, outra vez perseguidos e expulsos pelos mesmos,

refugiaram-se uns para as hodiernas Sete Missões, os outros para
a margem direita do Uruguai, encorporando-se à redução de Santo
Tomé, de cujas ruínas se levantou depois a cidade do mesmo nome,
quase em frente de S. Borja”. (Revo. C. Teschauer, citado)
Existe no arrabalde de S. Tomé a famosa sanga, que aponta como
prova do acontecimento e poder da teiniaguá encantada.


*10 ,... tangido pelo Destino* — É característico este traço no
indivíduo rio-grandense, que até por hábito doméstico emprega
como vulgares as expressões — sorte, destino, fado — Na gente
inculta torna-se curiosa a indistinta veneração prestada ao
divino e ao diabólico, como forças superiores que atuam
sobre os homens.


*11 ...aí durou duzentos anos, etc.* — Coincide com a
lamentação do sacristão encantado a era do período do mais calmo
das missões sobre o rio Uruguai, 1650, em que formou-se a lenda.







*O NEGRINHO DO PASTOREIO*
_A Coelho Netto_

_Pelotas — 1 de janeiro, 1907_

_Meu caro patrício Sr. J. Simões Lopes Netto._

_Venho agradecer-lhe a dedicatória da lenda “O Negrinho do
pastoreio” publicada no Correio Mercantil” de 26 de dezembro. Já
conversamos sobre a necessidade que, todos quantos nos interessamos
pela tradição temos de coligir as trovas e narrativas do velho
tempo. Elas representam o sonho dos que passaram, são a bem-dizer o
rastro das almas. Entendem muitos escritores que devem corrigir a
afabulação e a forma de tais relíquias tirando-lhe o caráter
ingênuo, o sabor suave que elas trazem de origem. O meu amigo não
incorreu em tal culpa—procedeu como o file celta que, chamado para
referir aos da “clan” as histórias dantanho, dizia-as repetindo com
respeitosa observância da tradição tal como as ouvira dos maiores. E
o que, sobretudo encanta no lindo raconto que me ofereceu, no qual
transparece bem a alma do povo pastoral, é a simplicidade.— Lendo-a
tive a impressão de estar ouvindo contada, em tom lento, por uma
dessas velhinhas que são as conservadoras de muito primor da Poesia
popular, tão rica em nossa pátria e tão desestimada._

_Reiterando os meus agradecimentos peço-lhe que continue a
respigarem tão rica seara trazendo-nos outros presentes como o que
me ofereceu com tanta generosidade._

_Muito seu agradecido_

_Coelho Neto_






O NEGRINHO DO PASTOREIO



Naquele tempo os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem
divisas nem cercas; somente numas volteadas se apanhava uma gadaria
chucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos...

Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de
onças  e meias doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla
e muito mau, muito.

Não dava posada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no
inverno o fogo de sua casa não fazia brasas, as geadas e o minuano,
podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a
sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora
bebia água das suas cacimbas.

Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de boa
vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de
conchavar-se com ele, porque só dava para comer um churrasco de
tourito magro, farinha grossa e erva caúna e nem um naco de fumo...
e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira que parecia que
era o seu próprio couro que ele estava lonqueando...

Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino
cargoso como uma mosca, para um baio de cabos negros, que era o seu
parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito
bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam
somente o —Negrinho.

A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia
afilhado da Virgem, Senhora nossa, que é a madrinha
de quem não a tem.

Todas as madrugadas o Negrinho galopeava parelheiro; depois conduzia
aos avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino,
que o judiava e se ria.


***


Um dia, depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreia com um
seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro
que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que
ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada,
mil onças de ouro.

No dia aprazado, na cancha  da carreira havia gente
como em festa de santo grande.

Entre os dois parelheiros a gauchada não sabia se decidir, tão
perfeito era e bem balançado cada um dos animais. Do baio era fama
que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas
crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não se lhe viam as
patas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto mais cancha,
mais agüente, e que desde a largada ele ia ser como um laço
que se arrebenta...

As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam
aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.

— Pelo baio! Luz e doble!...

— Pelo mouro! Doble e luz!...

Os corredores fizeram suas partidas à vontade e depois as obrigadas;
e quando foi a última na última, fizeram ambos sua senha e se
convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os
parelheiros menando cascos, que parecia uma tormenta...

— Empate! Empate! gritavam os aficionados ao longo da cancha por
onde passava a parelha veloz, compassada como n’uma colhéra.

— Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! gemia o Negrinho. Se o
sete léguas perde meu senhor me mata! Hip! hip! hip!...

E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.

—Se o corta-vento ganhar é só para os pobres! retrucava o outro
corredor. Hip! hip!

E cerrava as esporas no mouro.

Mas os fletes corriam compassados como numa colhéra. Quando foi na
última quadra, o mouro vinha arrematado e baio vinha aos tirões...
mas sempre juntos, sempre emparelhados.

E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou  de
sopetão, pôs-se em pé e fez uma cara-volta,, de modo que deu ao
mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E
o Negrinho, de em pelo, agarrou-se como um ginataço.

—Foi mal jogo! gritava o estancieiro

—Mau jogo! secundavam os outros da sua parceria.

A gauchada estava dividida: mais de um toreana coçou o punho da
adaga, mais de desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas
para o peito do pé... Mas o juiz, que era um velho do tempo da
guerra de Sapé-Tiaraiú, era um juiz macanudo, que já tinha visto
muito mundo. Abanado a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem.

—Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio,

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