List Of Contents | Contents of Lendas do Sul, by J. Somoes Lopes Netto
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ganhou o cavalo mouro. Quem perdeu, que pague. Eu perdi cem
gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei!

Não havia o que alegar. Despeitado e furioso o estancieiro pagou a
parada, à vista de todos atirando as mil onças de ouro sobre o
poncho do seu contrário, estendido no chão.

E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou
distribuir tambeiros e leiteiras, covados de baetas e baguais e deu
de resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras
seguiram com os changueiros que havia.


***


O estancieiro retirou-se para sua pobre casa e veio pensando,
pensando, calado, em todo caminho. A cara dele vinha lisa, mas o
coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado e meia
espalda... O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.

E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos
pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.

Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha
falou assim:

— Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta
dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de tordilhos
negros... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!

O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.

Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho,
varado de fome e já sem força nas mãos, enleiou a soga num pulso e
deitou-se encostado a cupim.

Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar e
todas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E
uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem
barulho nas asas.

O Negrinho tremia, de medo... porém de repente pensou na sua
madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.

E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o
Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três Marias; a
estrela d’alva subiu... Então vieram os guaraxains ladrões e
farejaram o Negrinho, e cortaram a guasca da soga.  O baio sentindo-
se solto rufou a galope, e toda tropilha com ele, escaramuçando no
escuro e desaguaritando-se nas canhadas.

O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram,
dando berros de escárnio.

Os galos estavam cantando, mas nem o céu nem as barras do dia se
enxergava: era a cerração que tapava tudo.

E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.


***


O menino malévola foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não
estavam. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos
pulsos a um palanque e dar-lhe uma surra de relho.

E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear o
perdido. Regulando, chorando e gemendo, o Negrinho pensou na sua
madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou  o coto de
vela aceso em frente da imagem e saiu para o campo.

Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros e nas
restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando
cera benta no chão: e de cada pingo nascia uma nova luz, e já eram
tantas que clareavam a terra e as manadas chucras não disparavam...
Quando os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalos
relincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou por
diante a tropilha, até coxilha que o seu senhor lhe marcara.

E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu...

Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo
instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com a Virgem, sua
madrinha, o negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas
agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém pior do que os bichos
maus, ao clarear o dia veio o menino, filho do estancieiro e enxotou
os cavalos, que se dispersaram, disparando campo fora, retouçando e
desguaritando-se nas canhadas.

O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seu pai
que os cavalos não estavam lá...

E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.


***


O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um
palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe até ele
não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo
escorrendo do corpo... O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e
Nossa Senhora, deu um suspiro triste, que chorou no ar como uma
música, e pareceu que morreu...

E como já e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o
estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um
formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o
sangue e os ossos... E assanhou bem as formigas; e quando elas,
raivosas, cobriram todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-lo,
é que então ele se foi embora, sem olhar para trás.

Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezes e
que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes
mil onças de ouro... e que tudo isto cabia folgado dentro de um
formigueiro pequeno...

Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pássaros
e a casca das frutas.

Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto.

E três dias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o
mesmo sonho.


***


A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha
e nem rastro.

Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava
do corpo escravo.

Qual não foi o seu grande espanto, quando chagado perto, viu na boca
do formigueiro o Negrinho de pé com a pele lisa, perfeita, sacudindo
de si as formigas que o cobriam ainda!... O Negrinho, de pé, e ali
ao lado o cavalo baio e ali junto, a tropilha dos trinta
cordilhos... e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho,
o estancieiro viu a madrinha dos que não a tem, viu a Virgem, Nossa
Senhora, tão serena, posada na terra, mas mostrando que estava no
céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.

E o negrinho, sarado e risonho, pulando de em pelo e sem rédeas,
no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.

E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não
chorou, e nem se riu.


***

Correu no vizindário, a nova do fadário e da triste morte do
Negrinho, devorado na panela do formigueiro.

Porém logo, de perto e de longe, de todos os rumos do vento,
começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo...

E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas
dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que
cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas,
mascates e carreteiros, todos davam notícia — da mesma hora — de
ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de
tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pelo,
em um cavalo baio!...

Então, muitos acenderam velas e rezaram o Padre-nosso pela alma do
judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o
que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só
entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar
a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e
salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia,
sem ninguém ver.


***


Todos os anos, durante três dias, o Negrinho desaparece: está metido
em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas
amigas; a sua tropilha esparramava-se; e um aqui, outro por lá, os
seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do
sol do terceiro dia, o baio relincha perto do seu ginete; o Negrinho
monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece
a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém,
nem na ponta, nem na culatra.


***


Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho,
sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as
restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas
e desce às canhadas.

O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de
jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto
de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora,
madrinha dos que não a têm.

Quem perder suas prendas nos campos, guarde a esperança: junto de
algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o
Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo — Foi por aí que eu perdi...
Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi!...

Se ele não achar... ninguém mais.






*ARGUMENTO DE OUTRAS LENDAS MISSIONEIRAS E DO CENTRO E NORTE DO
BRASIL.*



*MISSIONEIRAS*



*1*
*A mãe do ouro*


O que é hoje serra de pedra já foi gente vivente: foi gente num
tempo antigo, e por um castigo do céu, escureceu de repente e caída
ficou onde estava...

Onde estavam sozinhos ficaram serros e serrotes; onde estavam
apinhoscados ficou a serrania encordoada.

E os ossos aí estão acimentados, em pura pedra virados; a carne que
os cobria deu terra negra; os cabelos são os matos, matos que bebem
o sangue, que nos parece a nós apenas cascatinhas e vertentes; os
lugares ocados que aparecem são os buracos do seu corpo, da sua boca
e olhos, do seu nariz e ouvidos... As veias deram em ferro, e os
nervos, como parte delicada, viraram-se ouro e são os veeiros
amarelos que se entranham por aí abaixo, adentro da crosta, tal e
qual os nervos estão entranhados na carnadura da gente.

Mas o que governa tudo, que não se sabe o que é, que é a Alma, que
não morreu, essa é que é a Mão do Ouro, porque ela não entrou no
castigo, e que defende os nervos dos castigados, os veeiros da
fortuna, para que no dia do Perdão cada um ache o que seu é...

Aí está porque, quando troveja, tantos raios caem sobre sobre certos
serros e tanto ventarrão esbarra neles:... é a Mãe do Ouro
que chama socorro...

Às vezes rebenta um serro destes com estrondo grande; se é de noite,
no fogo que se vê sair, vai a cuidadeira de mudança para outro; se é
de dia, é sempre no pino do meio dia, e na luz do sol que encandeia
os olhos, apenas sente-se o rumo que ela toma, só o rumo, mas não o
lugar novo em que ela vai fazer morada nova.




*2*
*Serros Bravos*


Dos mortos por seu castigo, alguns não ficaram bem mortos
e ainda estrebucham, curtindo dores.

E como ainda estão meio vivos, quando algum vivente quer tirar para
sua cobiça o ouro — que é os seus nervos e que doem — os Serros,
esses, enfurecem-se, e por força de encantamentos somem-se, rasos,
ou atiram de uns para outros, temporais tão medonhos, que eriçam o
cabelo e prendem o passo dos homens, mesmo os mais desabusados.

E se eles teimam, morrem.



*3*
*A casa de M’bororé*


Dentro do mato grosso, mato velho e crescido, sem plantas pequenas
dentro, aí, só há uma luz pouca, tirante a verde e a cinzento: e
nenhuma árvore faz sombra, porque a  ramaria de todas faz peneira
por onde passa o sol, que nunca enxerga o chão...

Dentro desse mato, no mais tupido dele, há uma lombada redonda, como
uma casca de caramburé; aí, em cima dela, há uma casa de pedra
branca, branca como se encaliçada, e sem porta em nenhum lado nem
janela em nenhuma altura.

Dentro da casa branca as salas estão lastradas de barras de ouro e
barras de prata, do peso que é preciso dois homens para mover cada
uma; e todas as juntas das pilhas estão tomadas de poeiras finas...

Por cima de tudo estão, em montes, tocheiros de ouro maciço e
cálices e resplendores de santos; e salvas de prata
e turíbulos e cajados.

Nos corredores, como prontos para içar para as cangalhas das mulas
de carga, prontos, com as suas alças, estão lotes de surrões,
socados de moedas de ouro, separadas em porções, metidas
em bexigas de rês...

O rondador da casa branca anda dia e noite em redor dela; é um índio
velho, cacique que foi, M’bororé, de nome, amigo dos santos padres
das Sete Missões da serra que dá vertentes para o Uruguai.

Os padres foram tocados p’ra longe, levando só a roupa do corpo...
mas a casa branca já estava feita, sem portas nem janelas... e
M’bororé, que sabia tudo e era cacique, de noite, e precatado, com
os seus guerreiros, carregou de todos os lugares para aquele as
arrobas amarelas e as arrobas brancas, que não valiam a caça e a
fruta do mato e a água fresca, e pelas quais os brancos de hoje
matavam os nascidos aqui, e matavam-se uns aos outros.

M’bororé desprezava essas arrobas; mas como era amigo dos santos
padres das Sete Missões, guardou tudo e espera por eles, rondando a
casa branca, sem portas nem janelas.

Ronda e espera...



*4*
*Zaorís*


Nosso Senhor Jesus Cristo Louvado Seja Para Sempre! Amém!

Ele foi preso na quarta-feira, sentenciado na quinta
e crucificado na sexta.

E neste mesmo dia de sexta-feira, houve no Céu o julgamento dos
carrascos de Nosso Senhor, e logo desceu à Terra o arcanjo S. Miguel
com a ordem de castigar aos judeus; e o arcanjo passou essa ordem
aos anjos que estavam de guarda à Cruz, onde Nosso Senhor estava
pregado e morto.

Enquanto S. Miguel esteve na Terra deixou sobre ela muito brilho da
sua couraça de couro e das suas armas, e muita ventania das
suas asas de prata.

A gente já nascida estava condenada, pelo pecado de ter maltratado e
morto Jesus Cristo. Mas as crianças ainda não nascidas não podiam
sofrer castigo, porque não tinham culpa alguma. Porém os anjos da
guarda da Cruz não sabiam disso e iam castigá-los da mesma forma,
porque o arcanjo S. Miguel esquecera-se de avisar sobre as crianças
que nascessem naquela dia, que era justamente o da sentença de Deus.

Por isso, a Virgem Maria, que sabia do esquecimento de S. Miguel, em
memória Jesus não deixou os anjos da guarda da Cruz castigarem as
crianças nascidas nessa Sexta-feira, e então, para diferenciá-las
das outras, fez um milagre: e mandou que a ventania das asas de
prata do arcanjo ventasse sobre o olhos dos que fossem nascendo
nesse dia santo, e ao brilho das armas de ouro,
que brilhasse sobre eles.

E desse jeito todos ficaram assinalados e puderam ser diferenciados
dos nascidos na véspera, e bem diferençados, porque podiam ver
através a  água até o seu fundo e através as muralhas e montanhas
até o outro lado delas, porque tudo ficou transparente para eles.

E como a Virgem Maria não disse que subisse outra vez ao céu a
ventania das asas de prata do arcanjo nem o brilho das suas armas de
ouro, esse dons ficaram na terra, e em todas as sextas-feiras santas
procuram os olhos das crianças recém-nascidas, que então ficam com o
dom de ver no escuro e através qualquer parede de pedra,
madeira, ou ferro...

Para esses, nada existe escondido ou enterrado que seus olhos não
vejam, como os dos outros homens, de dia claro; e isso porque
nasceram em sexta-feira santa: os Zaorís...*

* Em relação ao argumento destas lendas — 1. 4 — reportamo-nos ao
raciocinado estudo do Sr. Pe. C. Teschauer sob o título — Lenda do
Ouro — (Rev. do Instº. do Ceará, tom. XXV-1911).




*5*
*O Angoéra*


O Angoéra, enquanto foi pagão, chamava-se desse nome; era um índio
grande, forçudo e valente; mas era triste, carrancudo e calado.

Quando os Padres de Jesus, entraram no sertão da serra, corridos que
vinham doutro rumo, foi Angoéra, o tapejara, que conduziu sem erro a
companhia; e quando os padres sentaram pouso, batizou-se.

E foi padrinho M’bororé, que era cacique e já amigo, muito, dos

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