List Of Contents | Contents of Lendas do Sul, by J. Somoes Lopes Netto
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outras em saracoteio...

Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer o sinal
da cruz;... porém — alma forte, coração sereno! — meteu o peito e
passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam das suas
juntas bolorentas.

As mãos, aquelas, sempre brandas, afagavam-lhe outra
vez os ombros...

Blau Nunes foi andando.

O chão ia alteando-se, numa trepada forte que ele venceu sem
aumentar a respiração; e num desvão, a modo dum forno, teve de
passar por uma como porta dele, e aí dentro era um jogo de línguas
de fogo, vermelho e forte, como atiçado com lenha de nhanduvái; e
repuxos d’água saídos das paredes batiam nele e referviam, chiando,
fazendo vapor; um ventarrão rondava ali dentro, enovelando águas e
fogos, que era uma temeridade cortar aquele turbilhão...

Outra vez ele meteu o peito e passou, sentindo o mormaço
das labaredas.

As mãos do ar mais o palmeavam nos ombros, como querendo dizer—
muito bem!—

Blau Nunes foi andando.

Já tinha perdido a conta do tempo e do rumo que trazia; sentia no
silêncio como que um peso de arrobas; a claridade mortiça, porém já
se lhe assentara nos olhos e tanto, que viu adiante, em sua frente e
caminho um corpo enroscado, sarapintado e grosso, batendo no chão
uns chocalhos, grandes como ovos de téu-téu.

Era boicininga, guarda desta passajem, que levantava a cabeça
flechosa, lanceando o ar com a língua de cabelos, preta, firmando no
vivente a escama dos olhos, luzindo, preto, como botões de veludo...

Das duas prezas recurvas, grandes como as aspas dum tourito de
soberano, pingava uma gota escura que era a peçonha sobrante por um
muito jejum de mortandade, lá fora...

A boicininga — a cascavel amaldiçoada — toda se meneava,
chocalhando os guizos, como por aviso, fueirando o ar com a língua,
como por prova...

Uma serenada de suor minou na testa do paisano... porém ele meteu o
peito e passou, vencendo sem olhar, a boicininga altear-se e
descair, chata e tremente... e passou, ouvindo o chocalho da que não
perdoa, o silbido da que não esquece...

E logo então, que era este o quinto passo de valentia que vencera
sem temer — de alma forte e coração sereno — logo então as mãos
voantes anediaram-lhe o cabelo, palmearam-lhe mais
chegadas os ombros.

Blau Nunes foi andando.

Desembocou num campestre, de gramado fofo, que tinha um cheiro doce
que ele não conhecia; em toda a volta arvores enfloradas e
estadeando frutos; passarinhada de penas vivas e cantoria alegre;
veadinhos mansos; capororocas e outro muito bicharedo, que recreava
os olhos; e listando a meio o campestre, brotado duma roca coberta
de samambaias, um olho d'água, que saía em toalha e logo corria em
riachinho, pipocando o quanto-quanto sobre areião solto, palhetado
de malacachetas brancas, como uma farinha de prata...

E logo uma roda de moças — cada qual que mais cativa! — uma ronda
alegre saiu dentre o arvoredo, a cercá-lo, a seduzi-lo, a ele Blau,
gaúcho pobre, que só mulheres de anáguas resvalonas conhecia...

Vestiam-se em frouxo trançado de flores, outras de fios de contas,
outras na própria cabeleira solta...; estas chegavam-lhe à boca
caramujos estrambóticos, cheios de bebida recendente e fumegando
entre vidros frios, como de geada; dançavam outras num requebro
marcado como por música... outras lá, acenavam-lhe para a lindeza
dos seus corpos, atirando no chão esteiras macias, num convite
aberto e ardiloso...

Porém ele meteu o peito e passou, com as frontes golpeando, por
motivo do ar malicioso que seu bofe  respirava...;

Blau Nunes foi andando.

Entrou no arvoredo e foi logo rodeado por uma tropa de anões,
cambaios e cabeçudos, cada qual melhor para galhofa, e todos em
piruetas e mesuras, fandangueiros e volantins, pulando como
aranhões, armando lutas, fazendo caretas impossíveis
para rostos de gente...

Porém o paisano meteu o peito neles e passou, sem nem sequer um ar
de riso no canto dos olhos...

E com este, que era o último, contou os sete passos das provas.



E logo então, aqui, surdiu-lhe em frente o vulto de face tristonha e
branca, que, certo, lhe andara nas pisadas, de companheiro — sem
corpo — e sem nunca lhe valer nos apuros do caminho;
e tomou-lhe a mão.

E Blau Nunes foi seguindo.



Por detrás de um  cortinado como de escamas de peixe-dourado, havia
um socavão reluzente. E sentada numa banqueta transparente,
fogueando cores como as do arco-íris, estava uma velha, carquincha e
curvada, e como tremendo de caduca.

E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava e tangia, e
atava em nós que se destorciam, ficando sempre linheira.

— Cunhã, disse o vulto, o paisano quer!

— Tu, vieste; tu, chegaste; pede, tu, pois! respondeu a velha.

E moveu e ergueu o corpo magro, dando estalos nas juntas e levantou
a varinha para o ar; logo o condão coriscou por sobre ela uma chuva
de raios, mais que como num temporal desfeito das nuvens carregadas
cairia. E disse:

— Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei...
Paisano, escolhe!

Para ganhar a parada em qualquer jogo;... de naipes, que as mãos
ajeitam, de dados, que a sorte revira, de cavalos, que se cotejam,
do osso, que se sopesa, da rifa... queres?

— Para tocar a viola e cantar... amarrando nas cordas dela o
coração das mulheres que te escutarem..., e que hão de sonhar
contigo, e ao teu chamado irão — obedientes, como aves varadas pelo
olhar das cobras — deitar-se entregues ao dispor dos teus beijos,
ao apertar dos teus braços, ao resfolegar dos teus desejos...
queres?

— Não! respondeu a boca, por mandado só do ouvido...

— Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos das plantas e assim
poderes curar os males dos que tu estimares ou desfazer a saúde dos
que aborreceres;... e saber simpatias fortes para dar sonhos ou
loucura, para tirar a fome, relaxar o sangue, e gretar a pele e
espumar os ossos... ou para ligar apartados, achar cousas perdidas,
descobrir invejas...; queres?

— Não!

— Para não errar o golpe — de tiro, lança ou faca — em teu
inimigo, mesmo no escuro ou na distância, parado ou correndo, destro
ou prevenido, mais forte que tu ou astucioso...; queres?

— Não!

— Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo o pelo;
... queres?

— Não!

— Para fazeres pinturas em tela, versos harmoniosos, novelas de
sofrimentos, autos de chocarrice, músicas de consolar, lavores no
ouro, figuras no mármor’... queres?

— Não!

— Pois que em sete poderes te não fartas nada te darei, porque do
que te foi prometido nada quiseste. Vai-te!



Blau nem se moveu; e, carpindo dentro em si a própria rudeza, pensou
no queria dizer e não podia e que era assim:

—Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo!... És
tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de
mim, em volta de mim, superior a mim... Eu te queria a ti,
teiniaguá encantada!...



Mas uma escuridão fechada, como nem noite a mais escura dá parelha,
caiu sobre o silêncio que se fez, e uma força torceu o paisano.

Blau Nunes arrastou um passo e outro e terceiro; e desandou caminho;
e quanto ele andara em voltas e contravoltas, em subidas e descidas,
tanto em direitura foi bater na boca da furna por onde havia
entrado, sem engano.



E viu atado e quieto o seu cavalo; em roda as mesmas restingas, ao
longe os mesmos descampados mosqueados de pontas de gado, a um lado,
o encordoado das coxilhas, a outro, numa aberta entre matos um claro
prateado, que era a água do arroio.

Memorou o que tinha acabado de ver e de ouvir e de responder;
dormido, não tinha, nem susto lhe tirara o entendimento.

E pensou que tendo tido oferta  de muito não lograria nada por
querer tudo;... e num arranco de raiva cega decidiu outra investida.

Votou-se para entrar de novo... mas bateu co’o peito na parede dura
do serro. Terra maciça, mato cerrado, capins, limos... e nenhuma
floresta, nem brecha nem buraco, nem furna, caverna, toca, por onde
escorresse um corpinho de guri, quanto mais passasse
porte de homem!...



Desanimado e penaroso, compôs o cavalo e montou; e ao dar de rédea
apareceu-lhe pelo lado de laçar o sacristão, o vulto de face branca
e tristonha, que tristemente estendeu-lhe a mão, dizendo:

— Nada quiseste; tiveste alma forte e coração sereno, tiveste, mas
não soubeste governar o pensamento nem segurar a língua:...

Não te direi se bem fizeste ou mal.

Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente,
que te dou.

É uma onça de ouro que está furada pelo condão mágico; ele te dará
tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma e nunca mais que
uma por vez; guarda-a em lembrança de mim!



E o corpo do sacristão encantado desfez-se em sombra
na sombra da reboleira...


Blau Nunes meteu na guaiaca a onça furada, e deu de rédea.

O sol tinha cambado e o Serro do Jarau já fazia sombra comprida
sobre os bamburrais e restingas que lhe formavam assento.



VII


Na troteada para o posto em que morava, um ranchote de beira chão
tendo como porta um couro —, Blau rumeou para uma venda grande que
sortia aquele vizindário, mesmo a troco de courama, cerda ou algum
tambeiro; e como vinha de garganta seca e a cabeça atordoada
mandou botar uma bebida.

Bebeu; e puxou da guaiaca a onça e pagou; era tão mínima a despesa e
o câmbio que veio, tanto, que pasmou, olhando para ele, de tão
desacostumado que andava de ver dinheiro tanto, que chamasse seu...

E de dedos engatanhados socou-o todo para dentro do afogado.

Calado, montou de novo, retirando-se.

No caminho foi pensando nas todas cousas que carecia e que iria
comprar. Entre aperos e armas e roupas, um lenço grande e umas
botas, outro cavalo, umas esporas e embelecos que pretendia, andava
tudo por uma mão cheia de cruzados; e a si próprio perguntava se
aquela onça encantada, dada para indez, teria mesmo o condão de
entropilhar outras muitas, tantas como as que precisava, e mais
ainda, outras e outras que seu desejo fosse despencando?!...

Chegou ao posto, e como homem avisado, não falou do que fizera
durante o dia, apenas do boi barroso, que campeiou e não achou; e no
seguinte, logo cedo saiu a campeiar a prova do prometido.

Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas tafulonas; e mais uma
adaga de cabo e bainha com anéis de prata; e mais as esporas
e um rebenque de argolão.

Toda a compra passava de três onças.

E Blau, as frontes latejando, a boca cerrada, num aperto que lhe
fazia doer o carrinho, piscando os olhos, a respiração atropelada,
todo ele numa desconfiança, Blau, por debaixo do seu balandrau
remendado começou a gargantear a guaiaca... e caiu uma onça... e
outra... e outra!... As quatro, que por agora eram tão de jeito!...

Mas não caíram duas e duas ou três e uma, ou as quatro, juntas,
porém sim de uma a uma, as quatro, de cada vez só uma...

Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas como homem avisado,
não falou do acontecido.

No outro dia seguiu a outro rumo, para outro negociante mais forte e
de prateleiras mais variadas. Já levava alinhavado o sortimento que
ia fazer, e muito em ordem foi encomendando o aparte das cousas,
tendo o cuidado para não querer nada de cortar, só peças inteiras,
que era para, no caso de falhar a onça, recuar da compra, fazendo um
feio, é verdade, mas não sendo obrigado a pagar estrago algum. Notou
a conta, que andava por quinze onças, uns cruzados p’ra menos.

E outra vez, por debaixo do seu balandrau remendado, começou a
gargantear a guaiaca, e logo lhe foi caindo na mão uma onça... e
segunda... outra... e quarta, mais outra, e sexta... e assim de uma
em uma, as quinze necessárias!

O negociante ia recebendo e alinhando sobre o balcão conforme vinham
minando da mão do pagador, e quando estavam todas disse,
entre risonho e desconfiado:

— Cuê-pucha!... cada das onça das suas parece que é um pinhão,
que é preciso descascar à unha!...

No terceiro dia passou na estrada uma cavalhada; Blau fez parar a
tropa e ajustou uma quadrilha, apartada por ele, à sua vontade, e
como facilitou o preço, fechou-se o trato.

Ele e o capataz, sós no meio da cavalhada iam fazendo mover-se os
animais; no apinhado de todas Blau marcava a cabeça que mais lhe
agradava pelo focinho, pelos olhos, pelas orelhas; com um sovéu
fino, de armada pequena, reboleava por dentro e ia, certo, laçar o
bagual escolhido; se ainda, sem ovas e bons cascos, aprazia-lhe,
tirava-o então, como seu, para o potreiro do piquete.

Olho de campeiro não errou vez alguma na escolha e trinta cavalos,
a flor, foram apartados custando quarenta e cinco onças.

E enquanto a tropa verdeava e bebia, os tratistas foram para
a sombra duma figueira que havia na bira da estrada.

Blau por debaixo do seu balandrau remendado, ainda desconfiado,
começou a gargantear a guaiaca... e foi logo aparando onça por onça,
uma, três, seis, dez, dezoito, vinte e cinco, quarenta,
quarenta e cinco!...

O vendedor, estranhando aquela novidade e demora,
não se conteve e disse:

—Amigo! As suas onças parecem todas de gerivá, que só cai
uma de cada vez!...


Depois desses três dias de prova, Blau acreditou na onça encantada.

Arrendou um campo e comprou o gado, p’ra mais de dez mil cabeças,
aquerenciando.

O negócio era muito acima de três mil onças, a pagar no recebimento.

Aí o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a
aparar onça a onça, uma atrás da outra, sempre uma a uma!...

Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não falhava golpe, mas tinha
de ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo tempo...

O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou,
sesteou; e quando sobre à tarde voltou à ramada, lá estava ele
ainda aparando onça traz onça...

Ao escurecer estava completo o ajuste.



Começou a correr a fama da sua fortuna. E todos espantavam-se, por
ele, gaúcho despilchado de ontem, pobre, que só tinha de seu as
chilcas, afrontar os abonados, assim, do pé para a mão... E também
era falado do seu esquisito modo de pagar — que pagava sempre,
valha a verdade — só de onça por onça, uma depois de outra
e nunca ao menos duas, acolheradas!...

Aparecia gente a propor-lhe negócio, ainda de pouco preço, só para
ver como aquilo era; e para todos era o mesmo mistério...

Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico... mas de
onça em onça, como tala de gerivá, que só cai de uma vez... como
pinhão da serra, que só descasca de um a um!...

Mistério para Blau, muito rico... muito rico... mas todo dinheiro
que ele recebia, que entrava das vendas feitas, todo dinheiro que
lhe pagavam a ele, todo desaparecia, guardado na arca de ferro,
desaparecia como desfeito em ar...

Muito rico... muito rico das onças que precisasse, e nunca faltaram
para gastar no que lhe parecesse: bastava-lhe gargantear a guaiaca,
e elas começavam a pingar;... mas nem uma das que recebia lhe
ficava, todas evaporavam-se, como água em tijolo quente...



IX


Então começou a corre um boquejo de ouvido para ouvido... e era que
ele tinha parte com o diabo, e que o dinheiro dele era maldito
porque, todos com quem tratava e recebiam das suas onças, todos
entravam ao depois a fazer maus negócios e todos perdiam em

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