outras em saracoteio... Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer o sinal da cruz;... porém — alma forte, coração sereno! — meteu o peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam das suas juntas bolorentas. As mãos, aquelas, sempre brandas, afagavam-lhe outra vez os ombros... Blau Nunes foi andando. O chão ia alteando-se, numa trepada forte que ele venceu sem aumentar a respiração; e num desvão, a modo dum forno, teve de passar por uma como porta dele, e aí dentro era um jogo de línguas de fogo, vermelho e forte, como atiçado com lenha de nhanduvái; e repuxos d’água saídos das paredes batiam nele e referviam, chiando, fazendo vapor; um ventarrão rondava ali dentro, enovelando águas e fogos, que era uma temeridade cortar aquele turbilhão... Outra vez ele meteu o peito e passou, sentindo o mormaço das labaredas. As mãos do ar mais o palmeavam nos ombros, como querendo dizer— muito bem!— Blau Nunes foi andando. Já tinha perdido a conta do tempo e do rumo que trazia; sentia no silêncio como que um peso de arrobas; a claridade mortiça, porém já se lhe assentara nos olhos e tanto, que viu adiante, em sua frente e caminho um corpo enroscado, sarapintado e grosso, batendo no chão uns chocalhos, grandes como ovos de téu-téu. Era boicininga, guarda desta passajem, que levantava a cabeça flechosa, lanceando o ar com a língua de cabelos, preta, firmando no vivente a escama dos olhos, luzindo, preto, como botões de veludo... Das duas prezas recurvas, grandes como as aspas dum tourito de soberano, pingava uma gota escura que era a peçonha sobrante por um muito jejum de mortandade, lá fora... A boicininga — a cascavel amaldiçoada — toda se meneava, chocalhando os guizos, como por aviso, fueirando o ar com a língua, como por prova... Uma serenada de suor minou na testa do paisano... porém ele meteu o peito e passou, vencendo sem olhar, a boicininga altear-se e descair, chata e tremente... e passou, ouvindo o chocalho da que não perdoa, o silbido da que não esquece... E logo então, que era este o quinto passo de valentia que vencera sem temer — de alma forte e coração sereno — logo então as mãos voantes anediaram-lhe o cabelo, palmearam-lhe mais chegadas os ombros. Blau Nunes foi andando. Desembocou num campestre, de gramado fofo, que tinha um cheiro doce que ele não conhecia; em toda a volta arvores enfloradas e estadeando frutos; passarinhada de penas vivas e cantoria alegre; veadinhos mansos; capororocas e outro muito bicharedo, que recreava os olhos; e listando a meio o campestre, brotado duma roca coberta de samambaias, um olho d'água, que saía em toalha e logo corria em riachinho, pipocando o quanto-quanto sobre areião solto, palhetado de malacachetas brancas, como uma farinha de prata... E logo uma roda de moças — cada qual que mais cativa! — uma ronda alegre saiu dentre o arvoredo, a cercá-lo, a seduzi-lo, a ele Blau, gaúcho pobre, que só mulheres de anáguas resvalonas conhecia... Vestiam-se em frouxo trançado de flores, outras de fios de contas, outras na própria cabeleira solta...; estas chegavam-lhe à boca caramujos estrambóticos, cheios de bebida recendente e fumegando entre vidros frios, como de geada; dançavam outras num requebro marcado como por música... outras lá, acenavam-lhe para a lindeza dos seus corpos, atirando no chão esteiras macias, num convite aberto e ardiloso... Porém ele meteu o peito e passou, com as frontes golpeando, por motivo do ar malicioso que seu bofe respirava...; Blau Nunes foi andando. Entrou no arvoredo e foi logo rodeado por uma tropa de anões, cambaios e cabeçudos, cada qual melhor para galhofa, e todos em piruetas e mesuras, fandangueiros e volantins, pulando como aranhões, armando lutas, fazendo caretas impossíveis para rostos de gente... Porém o paisano meteu o peito neles e passou, sem nem sequer um ar de riso no canto dos olhos... E com este, que era o último, contou os sete passos das provas. E logo então, aqui, surdiu-lhe em frente o vulto de face tristonha e branca, que, certo, lhe andara nas pisadas, de companheiro — sem corpo — e sem nunca lhe valer nos apuros do caminho; e tomou-lhe a mão. E Blau Nunes foi seguindo. Por detrás de um cortinado como de escamas de peixe-dourado, havia um socavão reluzente. E sentada numa banqueta transparente, fogueando cores como as do arco-íris, estava uma velha, carquincha e curvada, e como tremendo de caduca. E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava e tangia, e atava em nós que se destorciam, ficando sempre linheira. — Cunhã, disse o vulto, o paisano quer! — Tu, vieste; tu, chegaste; pede, tu, pois! respondeu a velha. E moveu e ergueu o corpo magro, dando estalos nas juntas e levantou a varinha para o ar; logo o condão coriscou por sobre ela uma chuva de raios, mais que como num temporal desfeito das nuvens carregadas cairia. E disse: — Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei... Paisano, escolhe! Para ganhar a parada em qualquer jogo;... de naipes, que as mãos ajeitam, de dados, que a sorte revira, de cavalos, que se cotejam, do osso, que se sopesa, da rifa... queres? — Para tocar a viola e cantar... amarrando nas cordas dela o coração das mulheres que te escutarem..., e que hão de sonhar contigo, e ao teu chamado irão — obedientes, como aves varadas pelo olhar das cobras — deitar-se entregues ao dispor dos teus beijos, ao apertar dos teus braços, ao resfolegar dos teus desejos... queres? — Não! respondeu a boca, por mandado só do ouvido... — Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos das plantas e assim poderes curar os males dos que tu estimares ou desfazer a saúde dos que aborreceres;... e saber simpatias fortes para dar sonhos ou loucura, para tirar a fome, relaxar o sangue, e gretar a pele e espumar os ossos... ou para ligar apartados, achar cousas perdidas, descobrir invejas...; queres? — Não! — Para não errar o golpe — de tiro, lança ou faca — em teu inimigo, mesmo no escuro ou na distância, parado ou correndo, destro ou prevenido, mais forte que tu ou astucioso...; queres? — Não! — Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo o pelo; ... queres? — Não! — Para fazeres pinturas em tela, versos harmoniosos, novelas de sofrimentos, autos de chocarrice, músicas de consolar, lavores no ouro, figuras no mármor’... queres? — Não! — Pois que em sete poderes te não fartas nada te darei, porque do que te foi prometido nada quiseste. Vai-te! Blau nem se moveu; e, carpindo dentro em si a própria rudeza, pensou no queria dizer e não podia e que era assim: —Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo!... És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim... Eu te queria a ti, teiniaguá encantada!... Mas uma escuridão fechada, como nem noite a mais escura dá parelha, caiu sobre o silêncio que se fez, e uma força torceu o paisano. Blau Nunes arrastou um passo e outro e terceiro; e desandou caminho; e quanto ele andara em voltas e contravoltas, em subidas e descidas, tanto em direitura foi bater na boca da furna por onde havia entrado, sem engano. E viu atado e quieto o seu cavalo; em roda as mesmas restingas, ao longe os mesmos descampados mosqueados de pontas de gado, a um lado, o encordoado das coxilhas, a outro, numa aberta entre matos um claro prateado, que era a água do arroio. Memorou o que tinha acabado de ver e de ouvir e de responder; dormido, não tinha, nem susto lhe tirara o entendimento. E pensou que tendo tido oferta de muito não lograria nada por querer tudo;... e num arranco de raiva cega decidiu outra investida. Votou-se para entrar de novo... mas bateu co’o peito na parede dura do serro. Terra maciça, mato cerrado, capins, limos... e nenhuma floresta, nem brecha nem buraco, nem furna, caverna, toca, por onde escorresse um corpinho de guri, quanto mais passasse porte de homem!... Desanimado e penaroso, compôs o cavalo e montou; e ao dar de rédea apareceu-lhe pelo lado de laçar o sacristão, o vulto de face branca e tristonha, que tristemente estendeu-lhe a mão, dizendo: — Nada quiseste; tiveste alma forte e coração sereno, tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a língua:... Não te direi se bem fizeste ou mal. Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente, que te dou. É uma onça de ouro que está furada pelo condão mágico; ele te dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma e nunca mais que uma por vez; guarda-a em lembrança de mim! E o corpo do sacristão encantado desfez-se em sombra na sombra da reboleira... Blau Nunes meteu na guaiaca a onça furada, e deu de rédea. O sol tinha cambado e o Serro do Jarau já fazia sombra comprida sobre os bamburrais e restingas que lhe formavam assento. VII Na troteada para o posto em que morava, um ranchote de beira chão tendo como porta um couro —, Blau rumeou para uma venda grande que sortia aquele vizindário, mesmo a troco de courama, cerda ou algum tambeiro; e como vinha de garganta seca e a cabeça atordoada mandou botar uma bebida. Bebeu; e puxou da guaiaca a onça e pagou; era tão mínima a despesa e o câmbio que veio, tanto, que pasmou, olhando para ele, de tão desacostumado que andava de ver dinheiro tanto, que chamasse seu... E de dedos engatanhados socou-o todo para dentro do afogado. Calado, montou de novo, retirando-se. No caminho foi pensando nas todas cousas que carecia e que iria comprar. Entre aperos e armas e roupas, um lenço grande e umas botas, outro cavalo, umas esporas e embelecos que pretendia, andava tudo por uma mão cheia de cruzados; e a si próprio perguntava se aquela onça encantada, dada para indez, teria mesmo o condão de entropilhar outras muitas, tantas como as que precisava, e mais ainda, outras e outras que seu desejo fosse despencando?!... Chegou ao posto, e como homem avisado, não falou do que fizera durante o dia, apenas do boi barroso, que campeiou e não achou; e no seguinte, logo cedo saiu a campeiar a prova do prometido. Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas tafulonas; e mais uma adaga de cabo e bainha com anéis de prata; e mais as esporas e um rebenque de argolão. Toda a compra passava de três onças. E Blau, as frontes latejando, a boca cerrada, num aperto que lhe fazia doer o carrinho, piscando os olhos, a respiração atropelada, todo ele numa desconfiança, Blau, por debaixo do seu balandrau remendado começou a gargantear a guaiaca... e caiu uma onça... e outra... e outra!... As quatro, que por agora eram tão de jeito!... Mas não caíram duas e duas ou três e uma, ou as quatro, juntas, porém sim de uma a uma, as quatro, de cada vez só uma... Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas como homem avisado, não falou do acontecido. No outro dia seguiu a outro rumo, para outro negociante mais forte e de prateleiras mais variadas. Já levava alinhavado o sortimento que ia fazer, e muito em ordem foi encomendando o aparte das cousas, tendo o cuidado para não querer nada de cortar, só peças inteiras, que era para, no caso de falhar a onça, recuar da compra, fazendo um feio, é verdade, mas não sendo obrigado a pagar estrago algum. Notou a conta, que andava por quinze onças, uns cruzados p’ra menos. E outra vez, por debaixo do seu balandrau remendado, começou a gargantear a guaiaca, e logo lhe foi caindo na mão uma onça... e segunda... outra... e quarta, mais outra, e sexta... e assim de uma em uma, as quinze necessárias! O negociante ia recebendo e alinhando sobre o balcão conforme vinham minando da mão do pagador, e quando estavam todas disse, entre risonho e desconfiado: — Cuê-pucha!... cada das onça das suas parece que é um pinhão, que é preciso descascar à unha!... No terceiro dia passou na estrada uma cavalhada; Blau fez parar a tropa e ajustou uma quadrilha, apartada por ele, à sua vontade, e como facilitou o preço, fechou-se o trato. Ele e o capataz, sós no meio da cavalhada iam fazendo mover-se os animais; no apinhado de todas Blau marcava a cabeça que mais lhe agradava pelo focinho, pelos olhos, pelas orelhas; com um sovéu fino, de armada pequena, reboleava por dentro e ia, certo, laçar o bagual escolhido; se ainda, sem ovas e bons cascos, aprazia-lhe, tirava-o então, como seu, para o potreiro do piquete. Olho de campeiro não errou vez alguma na escolha e trinta cavalos, a flor, foram apartados custando quarenta e cinco onças. E enquanto a tropa verdeava e bebia, os tratistas foram para a sombra duma figueira que havia na bira da estrada. Blau por debaixo do seu balandrau remendado, ainda desconfiado, começou a gargantear a guaiaca... e foi logo aparando onça por onça, uma, três, seis, dez, dezoito, vinte e cinco, quarenta, quarenta e cinco!... O vendedor, estranhando aquela novidade e demora, não se conteve e disse: —Amigo! As suas onças parecem todas de gerivá, que só cai uma de cada vez!... Depois desses três dias de prova, Blau acreditou na onça encantada. Arrendou um campo e comprou o gado, p’ra mais de dez mil cabeças, aquerenciando. O negócio era muito acima de três mil onças, a pagar no recebimento. Aí o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar onça a onça, uma atrás da outra, sempre uma a uma!... Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não falhava golpe, mas tinha de ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo tempo... O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou, sesteou; e quando sobre à tarde voltou à ramada, lá estava ele ainda aparando onça traz onça... Ao escurecer estava completo o ajuste. Começou a correr a fama da sua fortuna. E todos espantavam-se, por ele, gaúcho despilchado de ontem, pobre, que só tinha de seu as chilcas, afrontar os abonados, assim, do pé para a mão... E também era falado do seu esquisito modo de pagar — que pagava sempre, valha a verdade — só de onça por onça, uma depois de outra e nunca ao menos duas, acolheradas!... Aparecia gente a propor-lhe negócio, ainda de pouco preço, só para ver como aquilo era; e para todos era o mesmo mistério... Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico... mas de onça em onça, como tala de gerivá, que só cai de uma vez... como pinhão da serra, que só descasca de um a um!... Mistério para Blau, muito rico... muito rico... mas todo dinheiro que ele recebia, que entrava das vendas feitas, todo dinheiro que lhe pagavam a ele, todo desaparecia, guardado na arca de ferro, desaparecia como desfeito em ar... Muito rico... muito rico das onças que precisasse, e nunca faltaram para gastar no que lhe parecesse: bastava-lhe gargantear a guaiaca, e elas começavam a pingar;... mas nem uma das que recebia lhe ficava, todas evaporavam-se, como água em tijolo quente... IX Então começou a corre um boquejo de ouvido para ouvido... e era que ele tinha parte com o diabo, e que o dinheiro dele era maldito porque, todos com quem tratava e recebiam das suas onças, todos entravam ao depois a fazer maus negócios e todos perdiam em
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