prejuízos exatamente a quantia igual à de suas mãos recebida. Ele comprava e pagava e pagava à vista, é certo; o vendedor contava e recebia, é certo, mas o negócio empreendido por esse valor era prejuízo, garantido. Ele vendia e recebia, é certo; mas o valor recebido, que ele guardava e rondava sumia-se como um vento, e não era roubado nem perdido; era sumido, por si mesmo... O boquejar foi alastrando, e já diziam que aquilo, por certo, era mandinga arrumada na salamanca do Jarau, onde ele foi visto mais de uma feita... e que lá é que se jogava a alma contra a sorte... E os mais vivarachos já faziam suas madrugadas sobre o Jarau; outros mais sorros, p’ra lá tocavam-se ao escurecer; outros, atrevidaços iam à meia-noite, outros ainda ao primeiro cantar dos galos... E como nesse carreiro de precatados cada um fazia por ir de mais escondido, sucedeu que como sombras se pechavam entre as sombras das reboleiras, sem atinar co’a salamanca, ou sem topete para, na escuridão, quebrar aquele silêncio, chamando o santão, num grito alto... No entanto, Blau começou a ser tratado de longe, como um chimarrão rabioso... Já não tinha com quem pautear; churrasqueva solito, e mateava, rodeado dos cachorros, que uivavam, às vezes um, às vezes todos... A peonada foi saindo e conchavando-se noutras partes; os negociantes nada compravam-lhe e negaceavam para vender-lhe; os andantes cortavam o campo, para não pararem em seus galpões... Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele cerco de isolamento, que o ralava e esmorecia... Montou a cavalo e foi ao serro. Na trepada sentiu nos dois lados barulho nos bamburrais e nas restingas, mas pensou que seria alguma ponta de gado chucro que disparava e não fez caso; foi trepando, nem guaraxaim corrido, nem tatu vadio; era gente, que se escondia uns dos outros e dele... Assim que chegou à reboleira do mato, tão sua conhecida e recordada, e como chegou, deu de cara com o vulto de face branca e tristonha, o sacristão encantado, o santão. Ainda desta vez, como era ele que chegava, a ele competia louvar; saudou, como da outra: — Laus’ Sus’ Cris’!... — Para sempre, amém! respondeu o vulto. Então Blau, de a cavalo, atirou-lhe ao* pés a onça de ouro, dizendo: — Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, que não se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de onças!... Adeus! Fica-te com Deus, sacristão! — Seja Deus louvado! disse o vulto e caiu de joelhos, de mãos postas, como numa reza. Pela terceira vez falaste no Nome Santo, tu, paisano, e com ele quebraste o encantamento!... Graças! Graças! Graças!... E neste mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava no Nome Santo, neste mesmo momento ouviu-se um imenso estouro, que retumbou naquelas vinte léguas em redor; o Serro do Jarau, tremeu de alto a baixo, até as suas raízes, nas profundas da terra, e logo em cima, no chapéu do espigão, apareceu, cresceu, subiu aprumo-se, brilhou, apagou-se uma língua de fogo, alta como um pinheiro, apagou-se e começou a sair fumaça negra, em rolos grandes, que o vento ia tocando para longe, por cima do encordoado das coxilhas, sem rumo feito, porque a fumaceira inchava e desparramava-se no ar, dando voltas e contravoltas, torcendo-se, enroscando-se em altos e baixos, num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra e se desmancha como água passada em regador... Era a queima dos tesouros da salamanca, como dissera o sacristão. Sobre as caídas do Serro levantou-se um vozerio e tropel: eram os maulas que andavam rastreiando a furna encantonada e que agora fugiam desguaritados, como filhotes de perdiz... X Para os olhos de Blau o serro ficou como vidro transparente, e então viu ele o que lá dentro se passava: os brigões, os jaguares, os esqueletos, os anões, as lindas moças, a boicininga, tudo, torcido e enovelado, amontoado, revolvido, corcoveava dentro das labaredas que subiam e apagavam-se dentro dos corredores, cada vez mais carregados de fumaça... e urros, gritos, tinidos, silbidos, gemidos, tudo se confundia no tronar da voz maior que estrondeava no cabeço empenachado do serro. Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na teiniaguá... e a teiniaguá na princesa moura... a moura numa tapuia formosa;... e logo o vulto de face branca e tristonha tornou à figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num guasca desempenado... E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida das outras aquelas criaturas vindas do tempo antigo e lugar distante, aquele par, juntado e tangido pelo Destino,10 que é o senhor de todos nós, aquele par novo, de mãos dadas como namorados, deu as costas ao seu desterro, e foi descendo a pendente do coxilhão, até a várzea limpa, plana e verde, serena e amornada pelo sol claro, toda bordada de boninas amarelas, de bibis roxas, e malmequeres brancos, como uma cancha convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria, a caminho de repouso!... Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito uma cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e despacito foi baixando a encosta do serro, com o coração aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde... E agora estava certo de que era pobre como dantes que comeria em paz e seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!... ------------------------------------------------------------- Assim acabou a salamanca do Serro do Jarau, que aí durou duzentos anos,11 tantos se contam desde o tempo das Sete Missões, em que estas cousas principiaram. Anhangá-pitã, também, desde aí, não foi mais visto. Dizem que desgostoso, anda escondido, por não haver tomado bem tenência que a teiniaguá era mulher... *Elucidação* *1 Serro do Jarau* —Na Coxilha Geral de Sant’Ana, sobre a linha divisória com a República do Uruguai. Fica um pouco ao N. da cidade de Quaraí, em campos da família Assumpção, de Pelotas. É o ponto culminante (...metros) daquela zona, sendo avistado de muito longe. No fim da guerra do Farrapos (1845) notaram-se sobre o espigão do Serro, e parecendo dele sair, grossos rolos de fumaça. É essa a primeira notícia que há do fenômeno. Outras combustões registraram-se depois, notadamente por 1904, em que se disse mesmo que havia expulsão de vapores ígneos. *2 Salamanca* —Furna encantada; provém a denominação da cidade de Salamanca, na Espanha, onde existia, diz-se, uma célebre escola de magia, no tempo dos Mouros. A seguir a tradição local, o célebre caudilho Bento Manoel deveu a sua sorte guerreira, política, de fortuna ao conchavo que ajustou na salamanca do Jarau. Antes dele, alguns, mas depois, nenhum outro aí obteve mais nada, desde — “que o serro pegou fogo” — quando acabou o encantamento. *3 Laus’ Sus’ Cris’!* —Forma abreviada e estranha, é certo, porém expressiva da saudação — Louvado seja Jesus Cristo! Ouvimo-la inúmeras vezes, em nossa infância. *4 Boi barroso* —É a vaga relembrança de um boi encantado, que aparecia porém nunca era encontrado por mais procurado que fosse; e também denominação de uma antiga dança camponesa, cuja música era ornada de versos que eram cantados durante o folguedo. *5 Anhangá-pitã* — Literalmente, do tupi-guarani: diabo vermelho. *6 Teiniaguá* — Idem: lagartixa. A teiniaguá encantada também era chamada — carbúnculo, farol — e trazia engastada na cabeça “uma pedra preciosa que cintilava como brasa e de cor de rubim... Semelhante animal nunca puderam apanhar nem vivo nem morto, porque por suas irradiações desvia os olhos e mãos dos perseguidores”. (Rev°. C. Teschauer, S. J. na Rev. do Instº. do Ceará, 1911). *7 Zaorís* — V. adiante a lenda referente. *8 Charruas* — Tribo guerreira, indômita, acantonada sobre a Coxilha de Aedo, e dominando o rio Quaraí até o Uruguai e para L. até o rio Negro. As guerras e contínuas correrias que desde 1750 até mais de um século depois afligiram o Rio Grande e o Estado Oriental dizimaram esta tribo (como a outras) hoje por bem dizer, extinta. Desse quase acabamento e a deturpação das lendas que entre tais gentes floresceram. *9 Cidade de Santo Tomé* — Na Argentina; sobre o Uruguai, entre o Rio Icamaquã e a cidade rio-grandense de S. Borja. “Destruídas as reduções do Guaíra e expulsos pelos mamelucos, estabeleceram-se os missionários primeiro no centro do Rio Grande do Sul entre os rios Pardo e Jacuí. Mas só por poucos anos. Mais tarde, outra vez perseguidos e expulsos pelos mesmos, refugiaram-se uns para as hodiernas Sete Missões, os outros para a margem direita do Uruguai, encorporando-se à redução de Santo Tomé, de cujas ruínas se levantou depois a cidade do mesmo nome, quase em frente de S. Borja”. (Revo. C. Teschauer, citado) Existe no arrabalde de S. Tomé a famosa sanga, que aponta como prova do acontecimento e poder da teiniaguá encantada. *10 ,... tangido pelo Destino* — É característico este traço no indivíduo rio-grandense, que até por hábito doméstico emprega como vulgares as expressões — sorte, destino, fado — Na gente inculta torna-se curiosa a indistinta veneração prestada ao divino e ao diabólico, como forças superiores que atuam sobre os homens. *11 ...aí durou duzentos anos, etc.* — Coincide com a lamentação do sacristão encantado a era do período do mais calmo das missões sobre o rio Uruguai, 1650, em que formou-se a lenda. *O NEGRINHO DO PASTOREIO* _A Coelho Netto_ _Pelotas — 1 de janeiro, 1907_ _Meu caro patrício Sr. J. Simões Lopes Netto._ _Venho agradecer-lhe a dedicatória da lenda “O Negrinho do pastoreio” publicada no Correio Mercantil” de 26 de dezembro. Já conversamos sobre a necessidade que, todos quantos nos interessamos pela tradição temos de coligir as trovas e narrativas do velho tempo. Elas representam o sonho dos que passaram, são a bem-dizer o rastro das almas. Entendem muitos escritores que devem corrigir a afabulação e a forma de tais relíquias tirando-lhe o caráter ingênuo, o sabor suave que elas trazem de origem. O meu amigo não incorreu em tal culpa—procedeu como o file celta que, chamado para referir aos da “clan” as histórias dantanho, dizia-as repetindo com respeitosa observância da tradição tal como as ouvira dos maiores. E o que, sobretudo encanta no lindo raconto que me ofereceu, no qual transparece bem a alma do povo pastoral, é a simplicidade.— Lendo-a tive a impressão de estar ouvindo contada, em tom lento, por uma dessas velhinhas que são as conservadoras de muito primor da Poesia popular, tão rica em nossa pátria e tão desestimada._ _Reiterando os meus agradecimentos peço-lhe que continue a respigarem tão rica seara trazendo-nos outros presentes como o que me ofereceu com tanta generosidade._ _Muito seu agradecido_ _Coelho Neto_ O NEGRINHO DO PASTOREIO Naquele tempo os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente numas volteadas se apanhava uma gadaria chucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos... Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito. Não dava posada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo de sua casa não fazia brasas, as geadas e o minuano, podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas. Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de boa vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva caúna e nem um naco de fumo... e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira que parecia que era o seu próprio couro que ele estava lonqueando... Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio de cabos negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam somente o —Negrinho. A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora nossa, que é a madrinha de quem não a tem. Todas as madrugadas o Negrinho galopeava parelheiro; depois conduzia aos avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o judiava e se ria. *** Um dia, depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreia com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro. No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande. Entre os dois parelheiros a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem balançado cada um dos animais. Do baio era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não se lhe viam as patas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais agüente, e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta... As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços. — Pelo baio! Luz e doble!... — Pelo mouro! Doble e luz!... Os corredores fizeram suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando foi a última na última, fizeram ambos sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros menando cascos, que parecia uma tormenta... — Empate! Empate! gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como n’uma colhéra. — Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! gemia o Negrinho. Se o sete léguas perde meu senhor me mata! Hip! hip! hip!... E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio. —Se o corta-vento ganhar é só para os pobres! retrucava o outro corredor. Hip! hip! E cerrava as esporas no mouro. Mas os fletes corriam compassados como numa colhéra. Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e baio vinha aos tirões... mas sempre juntos, sempre emparelhados. E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de sopetão, pôs-se em pé e fez uma cara-volta,, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pelo, agarrou-se como um ginataço. —Foi mal jogo! gritava o estancieiro —Mau jogo! secundavam os outros da sua parceria. A gauchada estava dividida: mais de um toreana coçou o punho da adaga, mais de desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé... Mas o juiz, que era um velho do tempo da guerra de Sapé-Tiaraiú, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanado a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem. —Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio,
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